quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Implantação da República Portuguesa

 A República portuguesa fez ontem 111 anos e a independência de Portugal, 878 anos — ou, melhor dito, o seu reconhecimento pelo reino de Leão consagrado no Tratado de Zamora, já que o país a conquistara na prática quatro anos antes, proclamada por Afonso Henriques, tendo o selo de aprovação papal chegado 36 anos depois, na bula Manifestis Probatum de Alexandre III. Parabéns aos portugueses, portanto, por uma espécie de aniversário de Portugal, que tem a originalidade de celebrar em feriado a restauração da independência mas não (oficialmente, pelo menos) a conquista da mesma. E parabéns à República, que, quando democrática, é o melhor regime até hoje encontrado.


As celebrações do 5 de Outubro nos Paços do Concelho, de cuja varanda José Relvas proclamou o novo regime em 1910, aconteceram, este ano, poucos dias após eleições em que o povo de Lisboa escolheu mudar de presidente da Câmara. A proximidade de datas sublinha um dos princípios republicanos, aquele que dita que o exercício do poder depende do consentimento dos governados, que o podem outorgar e revogar. A assistir ao último discurso de Fernando Medina nesta cerimónia estava ­— a convite deste último, elogiado por Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos — o novo autarca eleito, Carlos Moedas que pega no testemunho a 18 de outubro.

“É o sentido de continuidade das instituições, de dignificação da política e de convivência democrática”, afirmou o edil cessante, desejando ao senhor que se segue “votos do maior sucesso ao serviço de Lisboa e dos lisboetas”, como conta a Rosa Pedroso Lima na reportagem do Expresso sobre a curta comemoração. (Nota à margem: terá de ser sempre um senhor que se segue? Para quando uma senhora? Entre os 308 presidentes de Câmara eleitos a 26 de setembro só 28 são mulheres, o que é bem espelho da sub-representação das mesmas em cargos dirigentes em Portugal).

Carlos Moedas explicou o prazer com que aceitou o desafio de Medina: “É muito importante estar aqui e muito importante que as transições sejam feitas com toda esta dignidade com que a estamos a fazer entre o presidente da câmara e o presidente eleito. É muito importante para todos nós e para a democracia”. Medina falou de mudança climática e do “imperativo moral” de enfrentá-la. “É nas cidades, onde vive 70% da população mundial, que está em jogo esse futuro. Da mesma forma que nos mobilizamos numa pandemia para proteger a saúde, temos a responsabilidade de nos mobilizarmos para proteger a vida e a saúde perante a mudança climática”, sustentou.

Inquieto também com a ascensão de forças demagógicas, conquanto “muito minoritárias”, que põem em causa “o património fundamental dos direitos humanos, da democracia representativa, da igualdade na cidadania e dignidade fundamental de todos os homens e mulheres” e “conseguem obter na sociedade do espetáculo uma projeção desproporcionada”, o socialista lastima “a atuação de responsáveis políticos que cedem ao que julgam ser o voto fácil” e exige “aos democratas que tenham uma consciência clara do que está em causa e não cedam à chantagem demagógica e ao ar do tempo caindo na armadilha de responder ao populismo com populismo”. Acrescentou que “não há radicalismo nem populismo que sejam bons para a democracia, ambos são o caminho para a desagregação coletiva”.

A festejar a República estava também, é claro, quem hoje preside à mesma. Marcelo Rebelo de Sousa arrancou com “duas palavras prévias: a primeira para evocar com saudade um grande presidente da câmara e um grande Presidente de Portugal, Jorge Sampaio; a segunda para agradecer, em termos nacionais, ao senhor presidente da câmara municipal que está a terminar o seu mandato e para formular, também em termos nacionais, um voto de felicidades ao senhor presidente da câmara que o vai iniciar”. A democracia está viva e o Presidente quer a evocação do 5 de Outubro seja também ela “uma data viva, não uma memória sem futuro ou um ritual sem alma”.

Uma República viva precisa, é claro, de cidadania crítica e de políticos atentos. Veio, pois, o aviso: “Falhar a entrada a tempo é perder, sem apelo nem agravo, uma oportunidade que pode não voltar mais”. O chefe de Estado deixou claro que num período em que o país disporá de “meios de financiamento adicionais”, estes devem ser “usados com rigor, eficácia e transparência”, até porque temos “dois milhões de pobres e alguns mais em risco de pobreza”. Se frisou a entrada num “novo ciclo económico e da multiplicação do conhecimento”, e também “do clima, energia, digital, ciência, tecnologia e renovado tecido produtivo”, a questão de estarmos ou não num novo ciclo político não deixou de pairar no ar.

É bom lembrar que dias antes, em entrevista à TVI, Marcelo asseverara que “as autárquicas têm sempre uma leitura nacional” e “os partidos vão ter de refletir”. O Presidente que nunca despiu bem o fato de comentador político considera que à esquerda se pode “reforçar a prazo a base de poder ou enfraquecê-la”, enquanto a direita enfrenta um problema de “estratégia” e não de “liderança” se quiser criar a alternativa “plausível e forte” que o próprio Marcelo há tanto afirma fazer falta. “Aquilo que às vezes provoca mais instabilidade é não haver alternativas fortes”, defendeu o homem que promete: “Não tenciono, se for possível, ter exercício do poder de dissolução do Parlamento até ao fim do mandato parlamentar”.

Preocupado com a aprovação dos dois orçamentos de Estado que faltam na atual legislatura, Marcelo falou dos fundos europeus e sentiu necessidade de sublinhar que “o Plano de Recuperação e Resiliência não é monopólio do PS nem do Governo, é do país”, uma vez que “os líderes partidários têm sempre a tentação de, no poder, utilizar os instrumentos de poder”. Quem tiver ouvido o primeiro-ministro durante a campanha das autárquicas não terá dúvidas quanto ao destinatário deste aviso. Que, já agora, nos lembra a origem etimológica do nome do nosso regime: a res publica é coisa pública.

António Costa, que foi a Eslovénia participar num encontro de dirigentes europeus, não acusou o toque. Promete que o orçamento de Estado para 2022 “vai dar muita atenção às classes médias e em particular às novas gerações” e assegura que o diálogo com os parceiros parlamentares “está a correr bem”. O Conselho de Ministros de sexta-feira será crucial para aprovar a versão final do documento, nota o chefe de Governo, reconhecendo que “o exercício do Orçamento é sempre relativamente demorado” e anunciando prioridades: “relançamento da nossa economia, com forte crescimento do investimento público” e atenção ao desafio demográfico.

Resta agora conseguir a viabilização das contas públicas para o próximo ano pela Assembleia da República, o que passará por negociações com o PCP, o BE, o PAN e as duas deputadas independentes. Numa República regida por democracia representativa, como a que ontem se festejou, é ao Parlamento que cabe exercer a soberania dos seus representados. Este texto de opinião do diretor do “Público”, Manuel Carvalho, parece-me uma boa recomendação a esse respeito.


Mantenhas.