UE-A União Europeia sofreu uma indigestão. Bruxelas activou o plano "retórica" para dissuadir os países da América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Peru e Equador) a ocuparem os mercados que ficaram abertos após a Rússia proibir a importação de frutas, legumes, peixe, leite, carne de porco e laticínios provenientes dos Estados Unidos, União Europeia, Austrália, Canadá e Noruega. Por meio de declarações veiculadas pelos média, a UE disse que não lhe parecia "leal" que os países latino-americanos se aproveitassem da crise com a Rússia para vender a Vladimir Putin os produtos mencionados.
Uma fonte da União Europeia disse ao Financial Times que o organismo europeu vai "falar com os países que, potencialmente, podem suprir essas exportações para recomendar que não se aproveitem injustamente da situação". Como agora não lhe convém, a Europa parece ter descoberto a injustiça que ela mesma promove a todos os níveis das suas relações comerciais com o resto do mundo, começando pelos desestabilizadores subsídios agrícolas, com os quais adultera a equidade dos mercados agrícolas mundiais.
As sanções que o Ocidente adotou contra Moscovo após a anexação da Crimeia pela Rússia e o apoio dado aos separatistas do leste da Ucrânia desembocaram numa guerra comercial muito forte entre os blocos. Moscovo respondeu às sanções com o embargo agrícola e imediatamente depois entrou em contacto com os países latino-americanos capazes de substituir os produtos sob embargo.
Os russos foram muito rápidos no seu objetivo de contar, a partir de setembro, com a possibilidade de importar frutas, legumes, peixe, leite, carne de porco e outros produtos que eram comprados da UE por um total de 11 mil milhões de euros (segundo fontes da comunidade, 5,2 mil milhões correspondem aos produtos agora vetados). Serguéi Dankvert, diretor do Serviço de Inspeção Agrícola e Pecuária russo, reuniu num primeiro momento com os embaixadores de Brasil, Argentina, Chile, Equador e Uruguai. Depois o "governo de Vladimir Putin" deu um passo muito mais concreto quando decidiu suprimir a proibição sanitária (vigente desde 2011) que pesava sobre 89 empresas de carnes do Brasil e 18 fábricas peruanas de tratamento de peixe. Fora da geografia latino-americana, Turquia e Bielorússia meteram-se na mesma brecha.
Os porta-vozes da UE protestaram contra a presença de "governos por trás" dos produtores privados. O argumento é de uma hipocrisia continental. Os 28 governos da UE estão, de maneira direta ou através de Bruxelas, por trás de todos os grandes contratos que se firmam no mundo.
A União Europeia afirma que contempla iniciar negociações com os países latino-americanos com forte potencial para substituir os produtos europeus. Fontes anónimas da UE declararam a vários jornais que se trata de negociações políticas cujo objetivo consiste em "enquadrar" o maior número possível de países a fim de pressionar a Rússia. O tema, porém, é outro: os europeus temem perder o mercado russo num momento em que o renovado esquema da Guerra Fria produz uma significativa aproximação entre Rússia e América Latina. O momento mais emblemático dessa relação recuperada ocorreu em 2008, quando as forças navais da Rússia e da Venezuela realizaram manobras conjuntas nas Caraíbas. A Rússia vendeu depois à Venezuela material militar numa operação estimada em 3 mil milhões de euros.
Exímio jogador de xadrez internacional, o presidente russo deslocou as suas peças no tabuleiro latino-americano com um olhar estratégico. O ministro britânico de Relações Exteriores, Philip Hammond, qualificou Vladimir Putin de "pária" na Europa. Na América Latina, em troca, o chefe de Estado russo foi um actor de peso.
Antes de Putin viajar para Cuba em Julho passado, o Parlamento Russo aprovou uma lei mediante a qual perdoou 90% da dívida que Havana tinha com Moscovo (35 mil milhões de euros). Na sua escala na Nicarágua, o presidente russo fez uma promessa: contribuir com a construção de um grande canal interoceânico capaz de competir com o Canal do Panamá.
Putin viajou também a Buenos Aires, onde firmou acordos de cooperação energética, e depois ao Brasil para participar em Fortaleza da cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Ali, estes países deram um passo histórico quando anunciaram a criação de um banco fora do circuito ocidental, o Banco de Desenvolvimento. O confronto na Ucrânia e a sua repercussão nas relações entre a Rússia e as potências do Ocidente colocou a América Latina no centro do jogo. A Europa busca agora a melhor maneira de tirar do meio um sócio múltiplo que ameaça as suas prerrogativas comerciais. A União Europeia vende à Rússia 10% da sua produção agrícola. No entanto, frente à ameaça latino-americana, Bruxelas argumenta que não é oportuno tratar com um sócio "pouco confiável" como Moscovo e que seria um erro maior dos países latino-americanos "sacrificarem uma relação económica já extensa por benefícios de curto prazo".
Na viagem que realizou em Julho passado à região, Vladimir Putin disse que a América Latina estava a converter-se "numa parte importante do mundo policêntrico emergente". O Ocidente fará todo o possível para reduzir o policentrismo.
Dupla linguagem, dupla geometria. A União Europeia e os países que a compõem sacam a bíblia dos valores segundo lhes convém. Por exemplo, apesar das múltiplas sanções e ameaças proferidas contra Moscovo pelo Ocidente, a França não renunciou a vender e entregar à Rússia dois navios porta-helicópteros Mistral por um valor de mil milhões de euros. Os malabarismos e advertências da UE não amedrontaram os actores institucionais ou privados. No Brasil, Ricardo Santin, presidente da secção de aves da Associação Brasileira de Proteínas Animais (ABPA) vê claramente uma "oportunidade para aumentar as suas exportações para a Rússia".
Entre janeiro e Junho deste ano, o Brasil exportou para a Rússia 563 milhões de dólares em carne bovina. O comércio bilateral entre Brasília e Moscovo representou 3 mil milhões de dólares no mesmo período. O secretário de Política Agrícola brasileira, Seneri Paludo, qualificou de "revolução" as possibilidades abertas pelo embargo russo. Na Argentina, o chefe de gabinete da presidência, Jorge Capitanich, deixou claro que a "Argentina gerará as condições para que o setor privado, com o impulso do Estado, possa aumentar as exportações e satisfazer a procura do mercado russo".
Segundo um informe publicado pela Câmara Argentino-Russa, no ano passado o comércio entre ambos os países cresceu 30%: passou de 1,98 mil milhões de dólares em 2012 para 2,627 mil milhões em 2013. Na frente do Pacífico, Chile, Peru e Equador estão na mesma linha. O Chile com o salmão (antes vinha da Noruega), as maçãs, peras e uvas (Polónia, França e Itália), o Equador com as frutas e flores (Holanda) e o Peru com o pescado. A nova Guerra Fria pode dar lugar a uma nova mudança do geocomércio.
Para ter uma ideia cifrada das necessidades russas, entre Janeiro e Maio de 2014, a Rússia importou produtos agroalimentares num valor de quase 17 mil milhões de dólares. Os cínicos da Europa clamam agora por um pouco mais de lealdade. Xavier Beulin, presidente da mega-subsidiada Federação Nacional de Sindicatos de Exportações Agrícolas (FNSA), saiu a denunciar o "oportunismo" dos produtores de Brasil e Argentina.
Os porta-vozes da UE protestaram, por sua vez, contra a presença de "governos por trás" dos produtores privados. O argumento é de uma hipocrisia continental. Os 28 governos da UE estão, de maneira directa ou através de Bruxelas, por trás de todos os grandes contratos que se firmam no mundo. Os monstruosos subsídios agrícolas e os seus 373 mil milhões de euros distribuídos entre os 13 milhões de agricultores da UE são uma prova mais que evidente. Na viagem que realizou em Julho passado à região, Vladimir Putin disse que a América Latina estava a converter-se "numa parte importante do mundo policêntrico emergente". O Ocidente fará todo o possível para reduzir o policentrismo.