Sistemas de Governo-As constituições escritas são hoje um fenómeno vulgar e generalizado mas a própria ideia de "escrever" uma Lei Fundamental é tipicamente moderna e relativamente recente. As mais antigas datam dos finais do século XVIII e nasceram de dois movimentos revolucionários, radicais e violentos, que marcaram dramaticamente o início da idade contemporânea: a Revolução Americana e a Revolução Francesa. A primeira assinalou a libertação das colónias inglesas da América do Norte da opressão do Império Britânico. A segunda assinalou a libertação da França do regime de servidão vigente sob o absolutismo monárquico. As duas constituições cumpriram uma missão nuclear: estabelecer um modelo ideal de ordenação política da sociedade. Embora a liberdade seja a principal motivação quer dos revolucionários americanos quer dos franceses, é a descrição da forma de organização política da sociedade nova que pretendem fundar, a preocupação primordial dos dois textos constitucionais.
As liberdades são tratadas em documento solene separado, posterior ou anterior à adopção da Lei Fundamental. A "Carta dos Direitos" iria ser aprovada na América uma década depois, na primeira revisão constitucional. E a "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" foi aprovada pelos "Estados Gerais" logo no início do processo revolucionário francês. Este desfasamento temporal comum às duas revoluções reflete a inspiração de um outro movimento revolucionário, ocorrido um século antes: a Revolução Gloriosa inglesa. Curiosamente, esta iria dar-se por satisfeita com a assinatura e o juramento solene por Guilherme de Orange - o rei que sucedeu, em 1691, ao rei absoluto deposto - de uma "Declaração de Direitos" que, inesperadamente, iria dispensar o Reino Unido da necessidade de adoptar uma constituição escrita, até hoje. O "constitucionalismo" britânico decapitou um monarca absoluto mas contentou-se com o compromisso de respeito da liberdade, certificado pela mão e pela cabeça coroada do novo monarca. Confortado pelo novo conceito de soberania - "The King in Parliament" - o Parlamento Britânico iria encarregar-se, já no princípio do século XVIII, de estabelecer, por lei, as traves-mestras das modernas "democracias representativas". Fora do Reino Unido, até ao século XX, a organização do poder político iria coincidir com a própria ideia de constituição, embora a "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" da Revolução Francesa já conjugue as duas preocupações num preceito lapidar onde proclama o respeito pelos "Direitos Humanos" e a "Separação dos Poderes" como únicos critérios de validade de uma "verdadeira constituição".
A matriz original do constitucionalismo contemporâneo encontra-se portanto no sistema de governo estabelecido. A Constituição americana perfilhou um sistema "presidencialista" que se mantém até hoje. O "parlamentarismo mitigado" que de forma equívoca se denomina vulgarmente por "semipresidencialismo", foi acolhido, em termos muito semelhantes, pelas constituições vigentes de Timor-Leste, Guiné-Bissau,Cabo-Verde e Portugal. Todas as constituições do Mundo, aliás, estão sobrecarregadas de fórmulas e conceitos importados de outras constituições. O parlamentarismo e o presidencialismo partilham a mesma preocupação original: impedir a restauração da tirania. Os ingleses entregaram todo o poder ao Parlamento e inventaram um "Cabinet" para governar debaixo da sua permanente vigilância e controlo. Os americanos mantiveram o poder soberano de fazer as leis no Parlamento, à semelhança do antigo colonizador, mas ao contrário dos britânicos, confiaram o Governo a um presidente democraticamente legitimado para um mandato limitado e estreitamente vigiado pelo legislador.
É isto o que substancialmente distingue o "parlamentarismo" do "presidencialismo", fórmulas a que se reconduzem as variantes mistas atuais. E por isso nos parece que a recente demissão do Governo da República da Guiné-Bissau por decisão do presidente, fundada na violação de uma suposta "relação de hierarquia e dependência funcional" entre os dois órgãos de soberania, subverte as diferenças essenciais entre os dois modelos e os caminhos diferentes por que visam prevenir o mesmo mal: a restauração da tirania.